domingo, 23 de outubro de 2011

O voto obrigatório e a produção de príncipes: o vereador de Taubaté e a lei contra a compra de votos

Um caipira em Bariloche ou Aracajú

Direto da terra do escritor Monteiro Lobato, região que o inspirou na criação de Jeca Tatu, um contemporâneo vereador viajou para Aracajú para participar de uma programação oficial da escola legislativa do Senado Federal. Encantado com o luxo do hotel onde ficou hospedado, fez declarações entusiasmadas e polêmicas num grupo de discussão da política local no facebook que o levaram aos telejornais nacionais e aos principais jornais impressos, diante da indignação que provocou entre os internautas conterrâneos. O grande problema da polêmica declaração que o "esperto" vereador, pequeno príncipe tresmariano, “um caipira em Aracajú” (perdoe a lembrança de Mazzaropi e Lobato), escreveu não está tanto no seu surto de sinceridade, a revelação de que leva vida de marajá à custa do dinheiro público [Leia aqui o teor da declaração e aqui a repercussão e “justificativa”]. Ele e os demais políticos que não declaram, quando "à serviço", possuem por direito (injusto?) essas regalias. Para mim, o cerne problemático da mensagem postada está no fato de que esse "estupefato" [sic] (como ele sempre gosta de dizer) reconhecimento queria e quer justificar seu assistencialismo-clientelismo e “coronelismo”. Agradeço ao povo essa vida de príncipe que me deu e por isso “trabalho” 24 horas [fazendo atendimentos e pequenos favores com sua “ambulância” e seu automóvel utilitário] para o povo. Ou literalmente: “Eu vivo disso, atendo o povo 24 horas por dia, fico disponível para eles". A parte da ambulância e dos carretos é declarada e documentada em outras mensagens na página virtual do prestativo representante do povo. Como o cordial “amigo de verdade”, ele crê, se bem que desconfio de sua inocência nesse quesito, que retribui o salário e regalias que o povo lhe dá com favores pessoais, desvirtuando toda a lógica da impessoalidade do serviço público. Mas vamos aos fatos por trás da sinceridade.



Entre outras estripulias midiáticas e de longa data, o edil Rodson Lima (PP) num protesto "em defesa dos mototaxistas" da cidade de Taubaté.



A lei contra a compra de votos e a campanha permanente

Em 1999, a Lei 9.840, que tipificou a compra de voto (grande marco da mobilização popular contra a corrupção eleitoral) foi votada e vigorou já em 2000. Desde lá, 660 políticos em todo o Brasil foram cassados pela prática de compra de votos (pouco, diante do casos que conhecemos, mas um avanço). Essa é a ideia da Lei, segundo a íntegra de seu artigo 41-A: "Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de 1 mil a 50 mil Ufirs, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar 64/90." Conheça a Lei aqui.

A Lei 9.840 não pune as práticas realizadas e declaradas pelo nobre edil simplesmente porque elas ocorrem fora do período eleitoral. Esse triste e trágico exemplo que um político de Taubaté trouxe para o Brasil é sintomático. Revela que precisamos aperfeiçoar esta Lei. Rodson Lima afirma que "ajuda" o povo, mas não pede voto em troca. E eu me pergunto, precisa pedi-lo explicitamente? Quem conhece o povo simples do Paiol (onde ele reside) ou dos bairros rurais e periféricos de Taubaté e de toda a região do Vale do Paraíba, quiçá de todo o Brasil, sabe como funciona a cultura política nacional. Um poste de energia entregue e um "estou às ordens, conte comigo, assim como eu conto com você". Vale mais do que qualquer contrato escrito e explícito passado em cartório. Na vida cotidiana vigora a lógica pragmática do "garantir o meu sustento de hoje"; cidadania, muitas vezes está restrita ao ganhar o almoço e até mesmo, em alguns casos, levar vantagem imediata, ainda que pequeníssima e com graves consequências futuras. Vigora também a honra da palavra, do dom e contra-dom, da obrigação de retribuir o favor, no momento da eleição, não importa se ela acontecerá neste ano ou daqui a quatro anos, esse compromisso é coisa que não se esquece. Com seis assessores de livre nomeação para cada vereador e um universo tradicional destes, ressalvando-se raras exceções, não é preciso fazer muito esforço para entender porque, apesar da “produtividade” insignificante quanto ao trabalho de fiscalização do executivo e promoção dos direitos sociais, onze dos quatorze vereadores de Taubaté foram reeleitos no último pleito municipal.

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Esse princípio da obrigação de retribuir o favor é constituinte do Brasil desde o seu primeiro dia de "vida", naquela praia onde portugueses e índios trocaram presentes em sinal de "aliança" entre parceiros com objetivos bastantes distintos e poderes muito desiguais. Esse princípio é bastante difundido na humanidade e foi objeto das reflexões do antropólogo Marcel Mauss ainda no início do século XX (em seu texto clássico “Ensaio sobre a dádiva”). Da mesma forma, a versão brasileira desse preceito foi amplamente estudada do ponto de vista das relações políticas por pesquisadores natos, dentre os quais destaco Sergio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil - o livro onde apresenta as características do "homem cordial") e principalmente, Victor Nunes Leal (Coronelismo, enxada e voto [aqui uma resenha desse livro que diz entre outras coisas que coronelismo é compromisso de troca de favores e que "São resultantes deste compromisso algumas características do sistema Coronelista que ainda perduram em nosso país – o mandonismo, o filhotismo, o nepotismo, o falseamento do voto e a desorganização dos serviços públicos locais"]).

Ou seja, a base para a condenação destas práticas, mesmo fora do período eleitoral está dada na objetividade do “ser” brasileiro; nossa cultura política é dessa forma e é plenamente conhecida e reconhecida, basta vontade e coragem política aos operadores da Lei deste país para agir contra a compra de votos.

Práticas clientelistas e impunidade judicial

Também foi muito significativo o fato de o referido vereador ter feito tais declarações polêmicas (mas há outras muito piores do que esta; consulte sua página no facebook) exatamente no dia (20/10/2011) em que a Justiça da cidade de Taubaté proferiu a sentença final do caso da venda de órgão de Taubaté, após 25 anos de arraste do processo [Aqui você entenderá o caso "Kalume"]. Apesar da condenação de dois dos três médicos (um deles já faleceu) à pena de reclusão por mais de 17 anos, a notícia de que poderão ainda recorrer em liberdade é sinal claro ao vereador de Taubaté e seus colegas que a impunidade é quase certa, ou a condenação será infinitamente distante no tempo; em São Paulo, o caso do Sr. Paulo Maluf é outro doce alento aos políticos corruptos. Aliás, não é preciso nem comentar aqui que o Vereador Rodson Lima (PP) é alvo de quatorze processos na justiça brasileira, sendo a maioria deles em função de prováveis crimes políticos.

Qual voto obrigatório produz príncipes?

Assim, até que a lei 9.840/99 seja aperfeiçoada, o único remédio que a sociedade tem contra essa prática de coronelismo-assistencialismo é a conscientização política destes eleitores que entendem que o sistema político é constituído por trocas de favores . Aliás, esse assunto remete a outra discussão. Muitos argumentam que a eleição de maus políticos ou políticos corruptos ocorre em função da obrigatoriedade do voto e que uma solução para garantir a qualidade dos políticos é a implantação do voto opcional ou facultativo, vota quem quiser. Por trás, desse argumento está a ideia de que, não sendo obrigado a votar, somente os cidadãos mais conscientes se disporiam a perder tempo e comparecer às urnas no dia da eleição. Mas, na verdade, esse argumento é equivocado. Em função da cultura política do coronelismo, isto é, a troca de favores, os eleitores desse político assistencialista e que tais são obrigados a votar; subjetiva e moralmente obrigados a votar nele, que lhe “deu” um par de óculos, fez-lhe um carreto “de graça”, deu-lhe “carona” até o hospital...

Portanto, contraditoriamente, a implantação do voto opcional favorecerá a eleição destes políticos que não se constrangem em comprar votos para se eleger. Não preciso lembrar ainda que quanto mais o clima for de “terra arrasada” na política melhor será para os politiqueiros. Esse clima afasta os eleitores das urnas ou do voto útil (por meio da ideia de que votando em branco estou prejudicando os candidatos corruptos) e torna mais fácil a eleição com o “obrigatório voto comprado”. Ou seja, o voto que o político-candidato compra é duplamente obrigatório: tanto pela legislação eleitoral, quanto pelo compromisso coronelista do favor. Eliminando-se a primeira obrigatoriedade, não se elimina a segunda... Ficará mais fácil assim a eleição dos corruptos e corruptores (e mais barato, pois precisará comprar menos votos para se eleger). E como fica uma Câmara e uma Assembléia com vereadores e deputados que compram votos? Presume-se que quem compra votos, também vende o seu a quem interessar. Um critério razoável para começar a escolher um bom candidato no ano que vem é descartar os que desejam comprar seu voto. Voto não tem preço, tem consequência. Pense nisso.